Organizadores: A. A. A. Fernandes
Editora: Novos Ases
Páginas: 534
Ano de publicação: 2024
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Urbano, Asmin e J., o trio da neuro, caminham pelos bosques remidos entre a civilização murada e a canônica repetida, em busca dos elos da natureza, que permanecem em brotos de ser, pelas entranhas dos ditos esquecidos ou maltratados. Neste primeiro lacunário, Poggio, o personagem do subtítulo, tem, como essência, a busca do seu Lucrécio e do seu "Da Natureza Das Coisas"; um achado tão aleatório e fundante como qualquer outro encontro atômico, ou humano; na geração de novos esperares e quereres; fundares humanos; desejares íntimos que se encontram nas lacunas do Outro.
Fala galera do Porão Literário, tudo certo? Hoje minha resenha é do livro Errantes do pensamento: O segredo de Poggio: uma rapsódia filosófica, lançado pela editora Novos Ases. O livro é de autoria de A. A. A. Fernandes e a resenha foi escrita por Leonardo Santos.
Como começar a resenha desse livro? Talvez pelo seu autor... Álvaro Alberto Azevedo Fernandes, médico e filósofo com uma trajetória multidisciplinar, entrega em "Errantes do Pensamento" uma obra que desafia as convenções literárias e filosóficas. O livro, classificado pelo autor como uma "rapsódia filosófica", navega entre a ficção, o ensaio crítico, poesia, e a reflexão autobiográfica, criando um mosaico de ideias sobre a condição humana, a medicina contemporânea e os limites entre razão e loucura.
A narrativa acompanha Urbano, um neurocirurgião cuja vida é virada de cabeça para baixo após um acidente que o transforma em paciente de um hospital psiquiátrico. Essa inversão de papéis — de curador a curado — serve como metáfora central para explorar temas como a fragilidade da sanidade, a ética médica e a busca por significado em um mundo fragmentado. Tão fragmentado quanto a escrita desse livro.
Isso porque toda a estrutura do livro reflete essa desordem: dividido em três atos ("Troia Destroçada", "A Nau do Não" e "Ancoradouro e Orlas Mentais"), o texto rompe com a linearidade, alternando entre memórias desconexas, diálogos filosóficos e notas marginais que funcionam como comentários irônicos sobre a própria escrita.
Até as notas de rodapé, aparentemente técnicas, são armadilhas literárias: algumas desconstroem citações acadêmicas, outras ironizam a obsessão por referências bibliográficas — e eu amei esse elemento na obra.
Urbano, em seus dias como cirurgião, encarna a frieza técnica de um sistema que prioriza resultados sobre o contato humano. Essa crítica ganha corpo nas interações com personagens como o psiquiatra J. e o filósofo Asmin, que questionam a validade de diagnósticos psiquiátricos e a colonialidade do saber médico. O paciente Poggio, um esquizofrênico enigmático, surge como contraponto: suas falas desconexas revelam verdades incômodas sobre a hipocrisia das instituições e a ilusão da normalidade.
A intertextualidade é um dos pilares da obra. Fernandes dialoga com clássicos como "Da natureza das coisas", de Lucrécio, recriando um hipotético "Sétimo Livro" que aborda a resistência humana diante de epidemias.
A linguagem é densa, por vezes labiríntica, mas deliberadamente poética. Fernandes utiliza metáforas como a "Nau do Não" — uma embarcação simbólica que leva Urbano a navegar por mares de dúvidas e dogmas — para explorar a relação entre conhecimento e poder. A escrita fragmentada, comparável a um palimpsesto, é complexa ao mesmo tempo em que é preciso conectar os pontos entre passagens aparentemente desconexas, como cenas do protagonista na infância, diálogos sobre ética médica e reflexões sobre a morte.
Apesar da complexidade, há uma humanidade palpável na obra. A relação de Urbano com a escrita, apresentada como um ato terapêutico e revolucionário, revela a crença no poder das palavras como ferramentas de transformação. Essa mensagem ressoa em um mundo onde a medicina — e, por extensão, a ciência — muitas vezes se distancia do aspecto subjetivo da existência.
Errantes do Pensamento não é uma leitura fácil, mas é profundamente recompensadora. Exige paciência para decifrar suas camadas, disposição para questionar pressupostos e coragem para encarar espelhos literários que refletem nossas próprias contradições. Para quem busca literatura que desafia a zona de conforto intelectual, este livro é um convite irrecusável — e um aviso de que a jornada filosófica de Fernandes está apenas começando.